sexta-feira, 28 de agosto de 2020

Ex Nihilo

Me contaram, com a crueldade que carregam todas as conversas casuais, que queres ser escritor! Que bela lástima escolheste para chamar de dor própria. Confesso que não pude aquietar-me antes de escrever-te esta breve carta. Confinei-me em minha própria mente para tentar, em um lapso de lucidez, ajuntar argumentos o bastante fortes para abrir-te os olhos com sensatez, arrancando de tua cabeça tão descabida ideia. Fracassei. O fato é que o homem não pode fugir de seu destino. Mesmo porque não existe destino. 

Tentei, então, pensar em razões para não enviar-te uma carta. Fracassei, mais uma vez (o que me levou a perceber a estranheza do momento e das reações que a notícia causaram em mim, posto que raramente erro; muito menos ainda duas vezes, em tão pouco tempo, no mesmo dia). Iniciei esta carta sem saber porque escrever, mas sem motivos que impedissem de fazê-lo. E, justo por isso, esta carta tem algum valor de conselho. Por não saber o que escrever nem porque não escrever, escrevi. Sem direção. Sem rumo. Escrevi o que me foi jogado à cara. E isto posso dizer-te com leveza de espírito: escreve o que o ócio te jogar à cara. O ofício de escrever se trata de poder escrever como e quando quiser. São teus o papel e a pena, oras bolas. Põe-te a escrever, se é esta a morte que queres para ti. 

Digo morte porque, para o escritor, esta é a direção para qual se corre, desatento e desprecavido, a medida que se escreve. Isto porque, na dialética do escrever e do viver, todo escritor se torna um leitor da inexorável realidade que lhe ronda. Realidade carregada de lírica e uma forma de agir, da eterna profundidade barroca da dualidade, o que faz do escritor um monstro sem tempo e sem território próprio: ele é uma somatória de momentos e lugares que, salvo raríssimas vezes, são só seus. O escritor é, por natureza, um observador. Um ferreiro, que molda situações como se fosse ferro - repetidamente, por força bruta. Porque é necessária a violência para tomar a língua nas próprias mãos nuas, para quebrá-la, sem a fraqueza da piedade, fazendo com que dela, já tão exaurida e insuficiente, surrada e incapaz de agir, dela própria, saia novo elixir, nova língua, novo poder. Se faz, assim, um inventor. Não só de histórias; de mundos. 

E, por falar em tempo, atente-se que nenhuma sorte é imune à intransigência do tempo. Muito menos a do escritor. Muitas temporalidades dentro de poucas linhas. A história que tentara narrar já não era mais a mesma ao final do enredo, posto que nem consigo mesmo pudera ser constante, pois sucumbiu, graças a Deus, aos devires impostos pelo tempo. A traição da letra, que deveria ser a prova da veracidade do testemunho, mas que trabalha justamente como carrasco - da tinta e do autor. Esta mesma carta: a história que deveria ser do hoje - mas já não pode ser, a medida que se tornou do ontem, até que chegue às tuas mãos, meu jovem rapaz. De fato, escrever é uma atividade anacrônica. Como disse o velho Borges, as palavras são símbolos que postulam a uma memória compartilhada. Assim, a língua é um sistema de citações. Portanto, de lembranças.

Assim, se é a prisão que realmente almejas, a liberdade encontrarás. “Velho louco”, hás de pensar. Erras. Não sou velho. Para que diante dos olhos se desenlacem os grilhões da escrita e se vislumbre a liberdade, de uma coisa não se pode prescindir: contemplar a emergência do tempo. Emergência, não como se fora urgência, mas como aquilo que, sem aviso prévio, emerge; o mistério do que não conhecemos e para o qual não estamos prontos, mas absolutamente desprevenidos. O tempo. Não sabemos como reagir, menos ainda o que propor, diante do abismo de aparências indecifráveis. Contemplar, questionar, aceitar a ignorância e esperar que contingências e acasos nos ofereçam a mão que abrirá as portas para soluções - ou novas questões. Ou a mão que arrancará o véu e mostrará a verdadeira face do assombroso desconhecido.

Como se não bastasse tamanha desgraça, escritor não tem terra. Não tem chão onde possa desmaiar, nem palmeira sob a qual recobrar o fôlego. Não tem pátria para chamar de lar. O território do escritor são as planícies das folhas. Telas multidimensionais, onde se desdobram o drama, a comédia, o real, o abstrato, a catarse.

Tamanha é a responsabilidade da pena e do papel que, para todos os que sofrem os desmandos do tempo e que não encontram para si lugares que não entrelugares, e que, ainda mais desgraçados, não contam com a escrita, assume o escritor o papel de Deus: o detentor do poder e, portanto, sobre quem pesa a obrigação de, ex nihilo, criar. Torna-se não só artesão de seu próprio mundo, mas o soberano que concede a asilo ao despatriado.

Não falo de coisas as quais farei, mas de coisas que gostaria de ter feito ou sabido antes, e que, ainda hoje, de verdade, me empenho em querer. Estou certo de que me perdoarás, ao menos por não conhecer-me, pela incoerência do meu querer: quero muito, mas nem sempre o faço, de modo que minha vontade mais patética é, na verdade, meu logos, minha linguagem, minha palavra, não meu ato.        Meu último conselho, não sei bem se posso classificar este amontoado de palavras assim, é este: Neruda, Borges, Cortázar, Fuentes, García López, Amado, Machado, Guimarães Rosa, Drummond de Andrade… a todos estes, a quem conheces, cuidas e, de fato, amas; quero que os tomes, que comas, que engulas, no ritual mais antropofágico que puderes. Devore as suas palavras como nutrientes. Só encontra a liberdade da perpétua pena de escrever aquele que, em alguma outra página, roubou a chave do cárcere. 




                                                Luiz Miranda, 2020, ano do isolamento.

soneto do homem comum


já andei por alguns jardins no mundo
senti em meu rosto a mansa brisa
o toque da flor que suaviza
como o dos teus dedos nos meus eu confundo.

seja deitado, nu, em minha cama
ou pilotando os ventos, em mim abraçado
cada gesto do teu corpo proclama
tua liberdade, de perfume imaculado

dos amores, só me lembro do teu
das cantigas, só me importa a tua
cantada por ciganos, sob a lua

dos perigos, não me lembro - nenhum
és a rima do poema meu
tornas poeta este homem comum

p/ o homem-inspiração, todos os dias,
d. luiz miranda

quinta-feira, 20 de agosto de 2020

medo

eu tenho medo.

me perguntas o porquê
que outra razão seria, senão a impotência?
não mandar dos desmandos do amor. 

arbitrária que é, a escrita cria suas próprias leis. E é no pequeno acento que se assenta a gigante semelhança entre o doido e o doído.

detalhes.

por vezes, quero de ti o carinho. 
a captura da nossa felicidade, em retratos instantâneos e sem critério. 

montanhas no Peru
ruas cheias da Bolívia
jardins na Argentina 
toda a América Latina.

palco dos nossos atos. 

escrever contigo um épico
nossas próprias linhas
ora trágicas... ora cômicas 
sempre dramáticas.

os lençóis são as cortinas que dividem esse teatro. 

outras vezes, quero de ti nada além de sangue. 
quero sangue
raiva
que reajas!
que cometas uma infâmia, um delito... de sentimentos.

tão perfeito, sem mácula...
quero que me provoques a ira!
que me dês um motivo para não te amar
pra que me seja mais simples te deixar
já que não sou metade do que desejas
nem um quinto do que mercedes.

me provocas convulsão de sentimentos contraditórios.

eu tenho medo.

sábado, 8 de agosto de 2020

amor em tempos de peste

enquanto me encontro confinado
muito mais dentro de mim do que de um quarto
lanço mistérios para ser, agora ou sempre, por ti, notado
se há quem ache que não sei o significado do gesto
se há quem especule sobre a minha ignorância
não há quem tateie minha pele
como quem responde às perguntas
como quem persegue respostas, mais do que reciprocidade
como tu o fazes.

a rosa, que antes exalava perfumes roubados
o povo, que outrora ansiava por canção nossa
o doente, o encarcerado
o fazendeiro, o mal amado
todos calados. silenciados. distanciados.

a captura do indizível, pelos braços de uma mente louca
se dá na linha tênue entre a memória e a lágrima
bem quando a esperança cai ao chão, surrada
e pudera ser diferente?
estaria morta?
poderia não haver morrido, sumariamente?
justo em terras de ignorância e paliativos
cumpriu seu destino, sem a chance de desviá-lo.

de fato, assisto à minha própria plateia, aos prantos
grato por não ter de chafurdar em migalhas
ouvindo o terno sibilar, não tão distante
do vento em teu rosto
do sol em teu rosto
de meu rosto em teu rosto
eu mesmo, ciente de nós
e feliz por esperar.

mais alto

"o teu amor pe uma mentira que a minha vaidade quer"               e teu corpo em minha boca               é a verdade que meu des...